Feliz ano novo- publicado em 27 de dezembro de 2005
Todos nós nos encantamos diante dos enormes avanços da ciência e com o que os cientistas aprenderam sobre o Universo e nosso lugar nele. A ciência sabe do que os planetas, as estrelas e nós somos compostos quimicamente, qual a química da vida e os mecanismos da genética. Conhece o processo pelo qual o sistema solar e a Terra foram formados, a idade da Terra, da vida na Terra, a idade do Sol e o seu futuro desenvolvimento, nosso lugar na Via Láctea, quantas outras galáxias existem e a taxa de expansão do Universo.
E, no entanto, diante da pergunta fundamental — quem somos, de onde viemos e para onde vamos — o homem moderno continua tão ignorante quanto os nossos ancestrais dos tempos da caverna. Mas com as mesmas necessidades de certezas.
Os antropólogos se dedicam a estudar há tempos o chamado pensamento mítico das sociedades primitivas. Em todas elas, o homem construiu histórias capazes de explicar a origem do mundo e a sua própria. O mito de que falam os antropólogos, porém, nada tem a ver com o significado da palavra hoje: fábula, invenção ou modelo exemplar. Trata-se de ver o mito como uma “realidade”. Quando uma tribo australiana revive o mito da origem do mundo, um observador pode imaginar que está presenciando uma “encenação”, uma “representação teatral”. Mas está enganado: os indígenas estão vivendo aquele momento como nos tempos imemoriais, estão “reatualizando as emoções”, estão experimentando novamente a criação do mundo. Por isso o mito é uma “realidade”.
Mesmo entre nós, o pensamento mítico sobrevive, e cito o exemplo do réveillon. Sabemos que o nosso calendário é uma das muitas convenções possíveis: poderíamos ter escolhido qualquer outro ponto da trajetória da Terra em torno do Sol e dizer: aqui começa o ano. E, no entanto, quando estamos reunidos à meia noite do dia 31, temos a nítida certeza de que um novo tempo começa, experimentamos novamente a criação do mundo: “Ano Novo, vida nova.” Vivemos aquilo como uma realidade concreta, embora seja apenas uma convenção, um mito.
Muitos dirão que no Ocidente as manifestações do pensamento mítico são cada vez mais raras, ficando o réveillon como um pálido exemplo. Seríamos uma sociedade imbuída das certezas científicas. Mas é justamente aí aonde quero chegar. A sociedade ocidental nos últimos séculos foi pouco a pouco substituindo a crença no fenômeno religioso, a crença em Deus, pela crença na ciência. Mas, nesse caminho, sem se dar conta, substituiu um pelo outro, mantendo as mesmas estruturas de pensamento. Não me refiro aos cientistas, mas a nós, os leigos.
Hoje, sem que ninguém saiba ao certo o que venha a ser o Big Bang, qualquer um nas ruas que não seja “anacronicamente religioso” é capaz de afirmar que o mundo surgiu de uma grande explosão. Essa mesma pessoa dirá também que o homem veio do macaco e que foi Darwin quem descobriu isso. Todos nós temos certezas e mais certezas, quando o assunto é ciência. Nós “acreditamos” na ciência, como antes acreditávamos em Deus.
Um cientista poderia me dizer que a credibilidade da ciência (e não na ciência) foi instituída devido aos seus sucessos: curas de doenças, desenvolvimentos de tecnologias tanto boas quanto ruins. Quando alguém voa em um avião, fala num celular, toma um antibiótico ou come soja transgênica, a coisa torna-se palpável: a “fé” na ciência pode ser pega nas mãos. É o que chamam de “ver para crer” em vez do “crer para ver” da religião.
Não tenho dúvidas sobre isso, mas o olhar que o leigo tem da ciência não é o olhar dos cientistas. Enquanto a ciência deixou para traz o positivismo, nós, os leigos, tratamos de incorporá-lo ao nosso dia-a-dia. E, sem que conheçamos nada a fundo, acreditamos em tudo. Os cientistas mantêm boa distância desse tipo de atitude. Sabem que tudo o que conseguem é dar a melhor explicação para os fatos de acordo com o conhecimento até aqui disponível. Mas sabem também que essa explicação “científica” geralmente é logo superada por outra, que às vezes a negará totalmente. Para os antigos, era o Sol que girava em torno da Terra, sendo inclusive possível constatar o fenômeno a olho nu. A Física de Newton era “a” verdade, até que Einstein mostrou que ela não era suficiente para explicar as leis do Universo. Lamarck fez muito sucesso dizendo que as girafas ficaram com o pescoço comprido de tanto o esticarem, até que Darwin mostrou que somente as girafas que tinham pescoço comprido, e por isso se alimentavam melhor, é que sobreviveram.
Hoje, no entanto, o Big Bang está para nós assim como muitos mitos de cosmogonia estavam para sociedades ditas primitivas. É ciência, mas é apreendido por nós como mito, no sentido antropológico do termo. Como realidade.
Se eu disser para qualquer amigo que o Big Bang é “uma” teoria, a que melhor explica hoje os fenômenos que envolvem o macrocosmo, mas que pode estar errada, vou ser tachado de doido ou prepotente ou, melhor, os dois. A Física Quântica, que explica o que acontece no microcosmo do átomo, é vista por nós como um dado da realidade como outro qualquer, muito embora ela seja de tal forma complexa que poucos de nós podemos apreender-lhe o sentido. E todos nós ficamos de queixo caído quando lemos que as leis que explicam o macrocosmo não são compatíveis com as leis que regem o microcosmo, como deveriam ser, e que, portanto, a ciência ainda está à cata de uma teoria geral que una tudo. Está à cata do que nós, leigos, chamamos de verdade.
Algo distante.
No livro “Deus e a Ciência”, dois físicos, Grichka e Igor Bogdanov, trocam idéias com o filósofo católico Jean Guitton. Em dado momento, eles dizem que toda a realidade repousa sobre um pequeno número de constantes cosmológicas: gravitação, zero absoluto, velocidade da luz, força nuclear, força eletromagnética etc. “Se só uma dessas constantes tivesse sido minimamente modificada, então o Universo — ao menos tal como o conhecemos — não poderia ter aparecido”, eles dizem. Prosseguem, contando que o resultado seria espantoso se os mais poderosos computadores fossem programados para calcular a probabilidade de que as condições para o surgimento do Universo tivessem se dado no tempo certo e na intensidade certa: “As leis da probabilidade indicam que esses computadores deveriam calcular durante bilhões de bilhões de bilhões de anos — isto é, durante um tempo quase infinito — até que pudesse aparecer uma combinação de números comparável àquela que permitiu a eclosão do Universo.”
Mais adiante, os três lembram que, para que a vida surgisse na Terra, foi preciso que, ao longo de bilhões de anos, um milhar de enzimas se aproximasse umas das outras, até que ocorresse a única ordenação entre elas capaz de gerar uma célula viva. Os biólogos calcularam a probabilidade de que essa única ordenação certa viesse a ocorrer: a probabilidade é da ordem de 10 seguido de mil zeros (um número indizível) contra um. Não, não se trata de uma chance em um milhão, ou uma chance em um trilhão, mas de uma chance contra 10 seguido de mil zeros. “O que equivale a dizer que a chance é nula”, arremata um deles. E para que os aminoácidos se esbarrassem na ordem certa para que se criasse uma molécula de RNA, os biólogos calcularam que teria sido necessário que a natureza multiplicasse “às apalpadelas” as tentativas durante pelo menos 10 elevado a 15 anos. “Ou seja, durante cem mil vezes mais tempo que a idade total do nosso Universo.”
É contar demais com a sorte, não?
Tudo isso para dizer que aqueles que transformam a fé em Deus em fanatismo e aqueles que acreditam na ciência como em um deus fazem isso porque buscam certezas. Vivem o mito como realidade.
Essa postura é muito diferente da verdadeira fé: ter fé é se sentir acolhido mesmo diante do mistério. E é também muito diferente do verdadeiro espírito científico: fazer ciência é duvidar sempre.
ALI KAMEL é jornalista.
Todos nós nos encantamos diante dos enormes avanços da ciência e com o que os cientistas aprenderam sobre o Universo e nosso lugar nele. A ciência sabe do que os planetas, as estrelas e nós somos compostos quimicamente, qual a química da vida e os mecanismos da genética. Conhece o processo pelo qual o sistema solar e a Terra foram formados, a idade da Terra, da vida na Terra, a idade do Sol e o seu futuro desenvolvimento, nosso lugar na Via Láctea, quantas outras galáxias existem e a taxa de expansão do Universo.
E, no entanto, diante da pergunta fundamental — quem somos, de onde viemos e para onde vamos — o homem moderno continua tão ignorante quanto os nossos ancestrais dos tempos da caverna. Mas com as mesmas necessidades de certezas.
Os antropólogos se dedicam a estudar há tempos o chamado pensamento mítico das sociedades primitivas. Em todas elas, o homem construiu histórias capazes de explicar a origem do mundo e a sua própria. O mito de que falam os antropólogos, porém, nada tem a ver com o significado da palavra hoje: fábula, invenção ou modelo exemplar. Trata-se de ver o mito como uma “realidade”. Quando uma tribo australiana revive o mito da origem do mundo, um observador pode imaginar que está presenciando uma “encenação”, uma “representação teatral”. Mas está enganado: os indígenas estão vivendo aquele momento como nos tempos imemoriais, estão “reatualizando as emoções”, estão experimentando novamente a criação do mundo. Por isso o mito é uma “realidade”.
Mesmo entre nós, o pensamento mítico sobrevive, e cito o exemplo do réveillon. Sabemos que o nosso calendário é uma das muitas convenções possíveis: poderíamos ter escolhido qualquer outro ponto da trajetória da Terra em torno do Sol e dizer: aqui começa o ano. E, no entanto, quando estamos reunidos à meia noite do dia 31, temos a nítida certeza de que um novo tempo começa, experimentamos novamente a criação do mundo: “Ano Novo, vida nova.” Vivemos aquilo como uma realidade concreta, embora seja apenas uma convenção, um mito.
Muitos dirão que no Ocidente as manifestações do pensamento mítico são cada vez mais raras, ficando o réveillon como um pálido exemplo. Seríamos uma sociedade imbuída das certezas científicas. Mas é justamente aí aonde quero chegar. A sociedade ocidental nos últimos séculos foi pouco a pouco substituindo a crença no fenômeno religioso, a crença em Deus, pela crença na ciência. Mas, nesse caminho, sem se dar conta, substituiu um pelo outro, mantendo as mesmas estruturas de pensamento. Não me refiro aos cientistas, mas a nós, os leigos.
Hoje, sem que ninguém saiba ao certo o que venha a ser o Big Bang, qualquer um nas ruas que não seja “anacronicamente religioso” é capaz de afirmar que o mundo surgiu de uma grande explosão. Essa mesma pessoa dirá também que o homem veio do macaco e que foi Darwin quem descobriu isso. Todos nós temos certezas e mais certezas, quando o assunto é ciência. Nós “acreditamos” na ciência, como antes acreditávamos em Deus.
Um cientista poderia me dizer que a credibilidade da ciência (e não na ciência) foi instituída devido aos seus sucessos: curas de doenças, desenvolvimentos de tecnologias tanto boas quanto ruins. Quando alguém voa em um avião, fala num celular, toma um antibiótico ou come soja transgênica, a coisa torna-se palpável: a “fé” na ciência pode ser pega nas mãos. É o que chamam de “ver para crer” em vez do “crer para ver” da religião.
Não tenho dúvidas sobre isso, mas o olhar que o leigo tem da ciência não é o olhar dos cientistas. Enquanto a ciência deixou para traz o positivismo, nós, os leigos, tratamos de incorporá-lo ao nosso dia-a-dia. E, sem que conheçamos nada a fundo, acreditamos em tudo. Os cientistas mantêm boa distância desse tipo de atitude. Sabem que tudo o que conseguem é dar a melhor explicação para os fatos de acordo com o conhecimento até aqui disponível. Mas sabem também que essa explicação “científica” geralmente é logo superada por outra, que às vezes a negará totalmente. Para os antigos, era o Sol que girava em torno da Terra, sendo inclusive possível constatar o fenômeno a olho nu. A Física de Newton era “a” verdade, até que Einstein mostrou que ela não era suficiente para explicar as leis do Universo. Lamarck fez muito sucesso dizendo que as girafas ficaram com o pescoço comprido de tanto o esticarem, até que Darwin mostrou que somente as girafas que tinham pescoço comprido, e por isso se alimentavam melhor, é que sobreviveram.
Hoje, no entanto, o Big Bang está para nós assim como muitos mitos de cosmogonia estavam para sociedades ditas primitivas. É ciência, mas é apreendido por nós como mito, no sentido antropológico do termo. Como realidade.
Se eu disser para qualquer amigo que o Big Bang é “uma” teoria, a que melhor explica hoje os fenômenos que envolvem o macrocosmo, mas que pode estar errada, vou ser tachado de doido ou prepotente ou, melhor, os dois. A Física Quântica, que explica o que acontece no microcosmo do átomo, é vista por nós como um dado da realidade como outro qualquer, muito embora ela seja de tal forma complexa que poucos de nós podemos apreender-lhe o sentido. E todos nós ficamos de queixo caído quando lemos que as leis que explicam o macrocosmo não são compatíveis com as leis que regem o microcosmo, como deveriam ser, e que, portanto, a ciência ainda está à cata de uma teoria geral que una tudo. Está à cata do que nós, leigos, chamamos de verdade.
Algo distante.
No livro “Deus e a Ciência”, dois físicos, Grichka e Igor Bogdanov, trocam idéias com o filósofo católico Jean Guitton. Em dado momento, eles dizem que toda a realidade repousa sobre um pequeno número de constantes cosmológicas: gravitação, zero absoluto, velocidade da luz, força nuclear, força eletromagnética etc. “Se só uma dessas constantes tivesse sido minimamente modificada, então o Universo — ao menos tal como o conhecemos — não poderia ter aparecido”, eles dizem. Prosseguem, contando que o resultado seria espantoso se os mais poderosos computadores fossem programados para calcular a probabilidade de que as condições para o surgimento do Universo tivessem se dado no tempo certo e na intensidade certa: “As leis da probabilidade indicam que esses computadores deveriam calcular durante bilhões de bilhões de bilhões de anos — isto é, durante um tempo quase infinito — até que pudesse aparecer uma combinação de números comparável àquela que permitiu a eclosão do Universo.”
Mais adiante, os três lembram que, para que a vida surgisse na Terra, foi preciso que, ao longo de bilhões de anos, um milhar de enzimas se aproximasse umas das outras, até que ocorresse a única ordenação entre elas capaz de gerar uma célula viva. Os biólogos calcularam a probabilidade de que essa única ordenação certa viesse a ocorrer: a probabilidade é da ordem de 10 seguido de mil zeros (um número indizível) contra um. Não, não se trata de uma chance em um milhão, ou uma chance em um trilhão, mas de uma chance contra 10 seguido de mil zeros. “O que equivale a dizer que a chance é nula”, arremata um deles. E para que os aminoácidos se esbarrassem na ordem certa para que se criasse uma molécula de RNA, os biólogos calcularam que teria sido necessário que a natureza multiplicasse “às apalpadelas” as tentativas durante pelo menos 10 elevado a 15 anos. “Ou seja, durante cem mil vezes mais tempo que a idade total do nosso Universo.”
É contar demais com a sorte, não?
Tudo isso para dizer que aqueles que transformam a fé em Deus em fanatismo e aqueles que acreditam na ciência como em um deus fazem isso porque buscam certezas. Vivem o mito como realidade.
Essa postura é muito diferente da verdadeira fé: ter fé é se sentir acolhido mesmo diante do mistério. E é também muito diferente do verdadeiro espírito científico: fazer ciência é duvidar sempre.
ALI KAMEL é jornalista.
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