Entendendo nosso tempo

  • on 18/06/2009
  • Como sempre Reinaldo Azevedo explicando o mundo.


    Há um aspecto freqüentemente pouco compreendido no que escrevo, e esta é uma boa oportunidade de aclarar as coisas. É evidente que o PT não inventou a corrupção e o desmando. Estes, na esfera pública, nasceram com a formação da primeira burocracia. Antes que volte aqui, uma digressão, mas sem largar, espero,o fio da meada.

    Dada a forma como entendo o mundo, digo mesmo que a tentação de fraudar as regras é tão humanamente explicável quanto a de criar novas regras. Equilibramo-nos entre esses dois extremos: regulação e transgressão. Nas sociedades bem-sucedidas no esforço de propiciar a seus cidadãos condições dignas de vida, a adesão às normas coletivamente pactuadas é alta; naquelas em que se cria a cultura da transgressão, os contrastes costumam ser evidentes — com, vejam que coisa!, os extremos de riqueza e de pobreza vivendo uma verdadeira orgia do descumprimento das leis. Os poderosos as descumprem no fausto e na abastança; os miseráveis, na carência e na miséria. Resta uma classe média que, esta sim, arca com o peso do estado fiscalizador e punitivo.

    Numa escala macro — e põe macro nisso! —, qual deveria ser um dos principais papéis de sucessivos governos? Diminuir o que eu chamaria de “passivo de cidadania” ou, se quiserem, de “cidadania informal”, onde se encontram, reitero os dois extremos da sociedade brasileira. Não pode ser considerado um cidadão exemplar aquele que nem sequer pode sonhar com algumas conquistas da sociedade moderna, construídas seja pelo, vá lá, coletivo da “humanidade” (categoria bastante ampla), seja pelo “coletivo brasileiro”. E essa gente precisa ser integrada ao país. Mas também não é um cidadão exemplar aquele que conquista uma posição que lhe permite descumprir a lei para obter benefícios especiais.

    Não, o PT não inventou a corrupção. Ele a desmoralizou. Explico. Até a chegada do partido ao poder, aqueles que eram flagrados em, como direi?, situação esquisita, negavam as irregularidades de pés juntos, ainda que para incredulidade geral. Se alguém assistir ao DVD do Roda Viva em que o entrevistado é Paulo Maluf, verão este escrevinhador a desafiá-lo:

    — Doutor Paulo, olhe para a câmera e declare: “As autoridades suíças estão mentindo. Aquele dinheiro que está lá não é meu!

    Sabem o que me respondeu Maluf, um homem quase romântico a esta altura, com aquele seu acento muito peculiar?

    — Reinaldo, ésto é você que está dezeeennndo; você é que estádezeeennndo que éles éstão menteeennndo. Eu não desse esso.

    O mensalão foi o emblema da grande inovação petista para manter um dos extremos da sociedade fora da lei — na verdade, acima dela. Sim, foram levados a admitir as irregularidades. Mas aprendemos com Lula, José Dirceu e Marilena Chaui que era uma forma que o PT tinha de interferir num cenário político essencialmente corrupto, entenderam? Fizeram aquelas coisas todas para o nosso bem. A frase que marca o período é do muito poderoso José Dirceu: “Estou cada vez mais convencido da minha inocência”. Viram? Não é aquela vulgaridade malufista de negar isso e aquilo, para incredulidade geral. Verdade ou mentira, inocência ou culpa, tudo é um discurso em construção.

    A corrupção deixava de ser um comportamento marginal de certa elite política para se tornar uma categoria de pensamento. E quem ousasse acusá-la era partidário de um golpe de estado — muito especialmente o jornalismo, que essa gente chama “mídia”. O grande advogado e beneficiário da, como chamarei, “ilegalidade construtiva” ou “ilegalidade para o progresso” é o próprio Luiz Inácio Lula da Silva.

    E que se note: o PT conseguiu fazer essa abordagem da corrupção sem renunciar aos privilégios do “dicurso do oprimido” e sem jamais ter deixado de acusar “as elites”.

    Como foi que o “Filho do Braisl”, o “Filho de Dona Lindu“, se referiu ao óbvio descalabro dos atos secretos do Senado, em que ninguém menos do que José Sarney é flagrado com uma penca de privilégios inaceitáveis?
    “Não li a reportagem do presidente Sarney, mas penso que ele tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum. Elas [as denúncias] não têm fim e depois não acontece nada.”

    A fala entrará para a história como um emblema da defesa da impunidade. Não, Sarney não é um “homem comum”. Incomum também é Lula. Incomuns são todos os petistas. Lulinha, com seu negócio com a Telemar (atual Oi), é mesmo coisa de gente incomuníssima, de “amigo do pai pra filho”… Em quase sete anos de poder, é uma das falas mais indecorosas do presidente da República. Ela advoga, na prática, uma espécie de aristocracia dos que não podem se atingidos pelas leis.

    O PT desmoralizou a corrupção, desmoralizou o desmando como defeito, falha, transgressão, comportamento a ser corrigido ou punido. Nos tempos de Maluf, nada bons, tinha-se o bom gosto, ao menos no fim, de negar a malfeitoria. Pilhados na falcatrua, os políticos diziam, como o adúltero de calça na mão: “Meu bem, não tire conclusões precipitadas… Este cara pelado não sou eu”. E, assim, não se tentava fazer da transgressão uma norma. Ao menos isso. Lula e o petismo, sem renunciar a nenhuma das práticas históricas — já disse: o PT não inventou nada —, tentam reeducar os nossos sentimentos, refazer os caminhos da nossa moral, propor-nos uma nova ética. Reivindicam a criação das castas com direitos especiais.

    “Sempre existiu”
    “Ah, Reinaldo, isso sempre existiu! Rico sempre ficou impune no Brasil”. Não serei eu a negar que a igualdade prevista na lei tem de ser cotidianamente construída. As diferenças sociais implicam, obviamente, diferenças na mobilização de recursos para o sujeito se defender e fazer valer seus direitos. Como negar? Não chegaremos jamais à perfeição, sei bem. Mas devemos buscá-la. O IMPORTANTE É QUE A IGUALDADE DIANTE DA LEI SEJA UM VALOR PERMANENTEMENTE CULTIVADO, TRANSFORMANDO-SE NUMA CULTURA, NUMA EXIGÊNCIA, ATÉ QUE PAREÇA UM DADO DA NOSSA NATUREZA. Para isso devem concorrer os governos democráticos.

    E aí está o problema. Lula faz exatamente o contrário. Advoga diferenças, especialidades, pede privilégios. E estes, agora, não são os de classe, mas os de partido. Sarney  é PT? Não! Mas é um de seus aliados. A máquina petista, como escrevi ontem, lava e enlameia reputações ao sabor de suas necessidades. E isso também é novo — e muito perigoso — no país. Se você não é um deles, pode ser esmagado, mesmo inocente, como foi Eduardo Jorge Caldas Pereira, secretário-geral da Presidência no governo FHC. Sendo um deles, mesmo as mais descaradas evidências são nada mais do que parte de uma conspiração.

    No Cazaquistão, o país do trapalhão Borat, Lula estava particularmente tomado pela iluminação — só que sem a inocência tosca daquele. Partiu também para cima da imprensa, que, na média, tantas mesuras lhe faz, praticamente escondendo, por exemplo, entre outras delicadezas, o sabão que levou em Genebra de entidades de defesa dos direitos humanos por conta do reiterado apoio do Brasil a ditaduras as mais sanguinárias.

    Sarney não é homem comum? Pois é…

    As primeiras palavras da Constituição dos EUA, um dos berços da democracia moderna, são “Nós, o povo…” Afinal, o que é o regime democrático: é aquele em que o governo é exercido pelos melhores dos homens comuns, em oposição aos regimes aristocráticos, que costumam ser comandos pelos piores dos homens especiais. Tocqueville percebeu isso desde logo quando comparou os Estados Unidos à Europa de então e anteviu um grande futuro para a democracia na América.

    Eu não cometeria a indelicadeza de sugerir a Lula que lesse Tocqueville. Bastaria que ele, sentindo aquela vontade irresistível de pensar, tivesse a educação de esperar a vontade passar.



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