Agora somos todos criminosos

  • on 26/10/2009
  • Reproduzo aqui um texto de Radley Balko publicado e traduzido pelo excelente site OrdemLivre, apesar de tratar da realidade americana, coloca questões que são importantíssimas para o Brasil, mas que ao contrario do que acontece nos EUA, aqui ficam completamente esquecidas no debate nacional.

    "Não há forma de governar inocentes.
    O único poder do governo é o poder de reprimir criminosos.
    Bem, quando não há criminosos suficientes, criam-se criminosos.
    Tantas coisas são declaradas crime que se torna impossível que viver sem infringir nenhuma lei."
    Ayn Rand

    Os crimes violentos nos Estados Unidos vêm diminuindo, universalmente, ao longo das últimas duas décadas. No início deste mês, o Departamento de Justiça anunciou que a incidência de estupros relatados atingiu o número mais baixo em 20 anos. Os homicídios estão diminuindo, assim como a violência juvenil e os crimes contra crianças. As taxas de criminalidade vêm caindo tão vertiginosamente desde o início dos anos 1990 que explicar o fenômeno se tornou uma obsessão entre criminólogos e sociólogos.



    Parte da queda das taxas pode ser explicada, é claro, pelas prisões em massa — os Estados Unidos são líderes mundiais na percentagem da população encarcerada. Colocar um em cada 100 cidadãos na cadeia causa em si certos problemas, e há muito debate sobre em que medida exatamente o encarceramento contribuiu para a queda nos crimes violentos. Mas não há dúvida de que se colocaram muitas pessoas na prisão nos últimos 20 anos, de que as taxas de criminalidade caíram, e parte das pessoas provavelmente acredita (com certa razão) que há relação entre os dois.

    Mas também há outro fenômeno ocorrendo, percebido na blogosfera semana passada por John Sides, professor de Ciência Política na Universidade George Washington. Segundo a Gallup, desde 2002 a percentagem do povo americano queacha que os crimes violentos estão em ascensão vem aumentando, mesmo com a queda continuada dos crimes em si. Sides nota que, de 1898 a 2001, percepção e realidade caminhavam mais ou menos juntas. Mas em 2002 e 2003 viu-se um salto de 19% na percepção pública de que os crimes violentos estavam aumentando, e o número vem subindo desde então, até 74% hoje. O que está acontecendo?

    Desde a época em que Richard Nixon fez do crime uma questão nacional, nos anos 1970, fomos condicionados por políticos e funcionários públicos a viver em estado de medo constante. O axioma dado é que há crimes demais e não se está fazendo o suficiente a respeito. Apesar disso, na realidade houve uma queda na procupação pública com o crime, que começou em 1992 e continuou até 2002. Como observado, essa queda correspondeu a um declínio nas taxas de criminalidade nacionais, algo que não se verificava há 30 anos. Que as taxas de criminalidade caíssem pela primeira vez em uma geração era algo novo, algo notável. Os anos 1990 também foram, em geral, uma década de otimismo. A economia seguia em frente, o país não estava envolvido em grandes guerras. Não tínhamos muitas preocupações, simplesmente.

    Após 2002, o estado de espírito nacional azedou. O terrorismo, obviamente um tipo de crime violento, estava em todos os jornais. A economia desacelerou. A imigração ilegal voltou a se tornar uma preocupação nacional, junto com a falsa premissa de que imigrantes sem registro trazem consigo crimes violentos. E assim voltamos a um estado de medo, embora a taxa de criminalidade tenha continuado a cair.

    Essas flutuações na pesquisa da Gallup são interessantes, mas é importante observar que a percentagem de entrevistados que acreditam que o crime violento está aumentando chegou a menos de 60% somente em três ocasiões desde 1991, apesar, novamente, de os crimes violentos estarem diminuindo ao longo de todo esse período.

    O medo torna a vida dos políticos mais fácil. Ganha votos e nos induz a dar ao governo mais poder, às custas da liberdade pessoal. E isso certamente se aplica quando se fala de criminalidade. Com a possível exceção do responsável direto pela segurança pública, exagerar a ameaça do crime violento traz somente benefícios para os políticos. Senadores, deputados, entre outros, dificilmente são vistos como responsáveis quando as taxas de criminalidade sobem. Mas eles ganham votos propondo novos poderes para que a polícia e a promotoria possam tentar abaixá-la.

    O resultado é um efeito de mão única sobre as políticas públicas de criminalidade. Estamos expandindo cada vez mais o poder da polícia e dos promotores, um processo com o qual o judiciário dificilmente interfere. As legislaturas federais e estaduais raramente eliminam antigos estatutos penais, mas estão sempre acrescentando novos. Um relatório de 2008 da Heritage Foundation estima que, somente no nível federal, o Congresso venha acrescentanfo cerca de 55 novos crimes ao código penal federal todo ano desde a década de 1980. Existem agora cerca de 4.500 crimes federais distintos. E isso não inclui as regulamentações federais, que cada vez mais tendem a ser punidas com sanções penais, e não administrativas. Também não inclui as manobras pelas quais os promotores conseguem aplicar leis amplas sobre conspiração federal, extorsão e lavagem de dinheiro. E ainda nem mencionamos os códigos penais estaduais.

    Em seu novo livro , Harvey Silvergate, defensor das liberdades civis e contribuidor ocasional da Reason, estima que, em 2009, o americano médio cometa cerca de três crimes federais por dia. E no entanto, não somos uma nação de degenerados. Ao contrário, a maior parte dos indicadores sociais vem se movendo em uma direção positiva por toda a última geração. Silvergate argumenta que cometemos esses crimes sem saber. O código penal federal se tornou tão amplo e aberto a interpretações, diz Silvergate, que um advogado americano consegu processar qualquer um por violação da lei federal. Na verdade, é quase impossível para alguns empresários atender a uma regulamentação federal sem violar outra. Não somos mais governados por leis, somos governados pelos caprichos de advogados.

    Seja qual for a sua opinião da ética ou da filosofia política de Ayn Rand, a profecia sobre justiça penal feita por ela se mostrou perturbadoramente precisa. Em nossa contínua ansiedade por purgar a sociedade americana no crime, permitimos que o governo nos tornasse todos criminosos.
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