Democracia: Francesa ou Anglo-saxão

  • on 01/08/2010
  • Vou republicar aqui um texto do site: ionline, sobre algumas diferenças entre a democracia nascida das revoluções populares europeias e americanas.

    por João Carlos Espada 
    Os nossos manuais escolares atribuem a origem das democracias ocidentais à Revolução Francesa de 1789. É frequente ouvir essa referência em debates públicos. No entanto, ela não é exacta.
    Em primeiro lugar, porque antes da Revolução Francesa ocorrera a Revolução Americana de 1776 e a Revolução Inglesa de 1688. Em segundo lugar, porque as democracias mais antigas e duradouras inspiraram-se na experiência americana e inglesa, não na francesa. Em terceiro lugar, porque o modelo francês inspirou sobretudo experiências radicais não propriamente democráticas: o republicanismo radical da América Latina e da I República portuguesa (1910-1926), bem como a revolução soviética de 1917.

    Um exercício comparativo A explicação deste equívoco é simples, ainda que pouco conhecida: embora possa ser dito que as três revoluções (inglesa, americana e francesa) visavam igualmente romper com o absolutismo monárquico, a verdade é que o "novo regime" que propunham não era o mesmo. Nos casos inglês e americano, tratava-se de restaurar um governo limitado, fundado no consentimento dos eleitores. No caso francês, tratava-se de substituir o antigo absolutismo monárquico por um novo absolutismo, popular e republicano.
    Esta diferença crucial pode ser observada pela leitura comparativa de duas das obras que mais influenciaram a Constituição Americana, por um lado, e a Revolução Francesa, por outro. No caso americano, temos "The Federalist Papers", uma colecção de ensaios que Alexander Hamilton, John Jay e James Madison publicaram em jornais da época, sob o pseudónimo comum de "Publius", com vista à defesa do projecto constitucional de 1787. No caso francês, temos um dos livros que mais influenciou os revolucionários de 1789, "Du contrat social" de Jean-Jacques Rousseau, originalmente publicado em 1762.
    Cepticismo ou esquema de perfeição? Uma boa forma de começar este exercício reside em comparar o propósito anunciado por cada autor para a sua obra. Comecemos por escutar Rousseau:

    "Como encontrar uma forma de associação que defenda a pessoa e bens de cada membro com a força colectiva de todos, e sob a qual cada indivíduo, enquanto se une aos outros obedece somente a ele próprio, mantendo-se tão livre como anteriormente?. Este é o problema fundamental ao qual o contrato social dá a solução". ("O Contrato Social", Livro I, capítulo 6).
    O objectivo de Rousseau é encontrar um esquema de perfeição, uma solução política perfeita, em que cada um obedece a todos sem obedecer a ninguém, permanecendo tão livre sob o governo civil quanto era no estado de natureza. Isto vai ter tremendas implicações, como veremos a seguir, porque Rousseau vai defender que, se o povo for soberano, não haverá ameaças à liberdade das pessoas.
    Vejamos agora o contraste com o tom sóbrio e céptico de James Madison, que viria a ser o quarto presidente norte-americano e que foi um dos autores dos "Federalist Papers":
    "Se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário. Se os anjos governassem os homens, não seriam necessários nem controlos externos nem internos sobre o governo. Ao criar um governo que será administrado por homens sobre homens, a grande dificuldade reside no seguinte: devemos, em primeiro lugar, capacitar o governo para controlar os governados; e em seguida, obrigá-lo a controlar-se a si próprio. A dependência do povo é, sem dúvida, o controlo primário sobre o governo; mas a experiência ensinou à humanidade a necessidade de precauções adicionais." ("O Federalista" 51)
    James Madison parece estar a responder directamente ao projecto utópico de Rousseau. Ele afasta imediata e explicitamente qualquer sonho de perfeição política. Porque os homens não são anjos, a perfeição política está-nos vedada.
    Governo limitado ou vontade geral suprema? Madison fala de uma "grande dificuldade" em resolver os seus dois problemas e adverte: "A dependência do povo é, sem dúvida, o controlo primário sobre o governo; mas a experiência ensinou à humanidade a necessidade de precauções adicionais." Isto significa que Madison não acredita que um governo emanado do povo deva ser isentado de controlos adicionais. Por esta razão, Madison vai imediatamente preocupar-se com a criação de mecanismos de controlo sobre o governo popular:
    "Mas a grande segurança contra a gradual concentração dos vários poderes nos mesmos departamentos consiste em dar àqueles que administram cada departamento os meios constitucionais e os motivos pessoais necessários para resistir à invasão dos outros. A provisão para a defesa deve, neste como em todos os outros casos, ser proporcional ao perigo de ataque. A ambição deve ser usada para contrariar a ambição." ("O Federalista" 51).
    Temos aqui uma perspectiva muito diferente da de Rousseau, a quem pertence a passagem seguinte:
    "Se, então, eliminarmos do pacto social tudo que não lhe seja essencial, verificamos que se reduz ao seguinte: ?cada um de nós coloca na comunidade a sua pessoa e todos os seus poderes, sob a direcção suprema da vontade geral; e, como um corpo, incorporamos cada membro como uma parte indivisível do todo?" ("O Contrato Social", Livro I, cap. 6).
    Equilíbrio de poderes ou um todo indivisível? A ideia de Rousseau é claramente oposta à de Madison. Em vez de separação de poderes, ele fala de um poder único e supremo da vontade geral. Em vez de equilíbrio de poderes, ele sonha com um todo unitário e indivisível. Estas ideias ficam ainda mais claras na passagem seguinte:
    "Estes artigos de associação, entendidos correctamente, são redutíveis a um único, nomeadamente a total alienação por cada associado de ele próprio e de todos os seus direitos, para toda a comunidade. Assim, em primeiro lugar, à medida que cada indivíduo se dá em absoluto, as condições são as mesmas para todos, e precisamente porque são as mesmas para todos, não é do interesse de ninguém tornar as condições onerosas para os outros." ("O Contrato Social", Livro I, cap. 6).
    Rousseau não podia ser mais claro. O seu contrato de associação exige "a total alienação por cada associado de ele próprio e de todos os seus direitos, para toda a comunidade" - e esta comunidade é sempre pensada como um todo unitário. Uma vez que se trata de uma associação entre iguais - e as condições são iguais para todos - ninguém terá interesse em prejudicar os outros. Com este raciocínio puramente abstracto, Rousseau introduz o culto da igualdade que iria marcar as tragédias políticas modernas. O poder dos iguais é um poder perfeito e, por isso, deve ser ilimitado e sem partilha, sem apelo:
    "Em segundo lugar, uma vez que a alienação é incondicional, a união é tão perfeita quanto pode ser, e nenhum associado individual continuará a ter quaisquer direitos a reclamar." ("O Contrato Social", Livro I, cap. 6)
    Pluralismo ou monismo? Finalmente, Rousseau vai fechar o seu esquema de perfeição com outra abstracção igualitária, cuja consequência política será de novo a ideia de um poder ilimitado do todo sobre as partes. E as partes, por sua vez, não só ficariam tão livres como antes, mas ainda ficariam com mais poder:
    "Finalmente, uma vez que cada homem se dá a todos, ele dá-se a ninguém; e, uma vez que não há qualquer associado sobre o qual ele não ganhe os mesmos direitos que os outros ganham sobre ele, cada homem recupera o equivalente a tudo o que perdeu, e na troca adquire mais poder para preservar o que ele possui." ("O Contrato Social", Livro I, cap. 6)
    De novo, estas palavras devem ser contrastadas com o cepticismo prudente de Madison e a sua preocupação permanente de limitar, dividir e controlar todo o poder:
    "Esta política de fornecer, através de interesses opostos e rivais, a falta de melhores motivos, pode ser encontrada em todo o sistema de relações humanas, privadas e públicas. Vemos isto particularmente exposto em todas as distribuições de poder subordinadas, onde o objectivo constante é dividir e organizar os vários departamentos de modo a que cada um possa ser um freio sobre o outro - que o interesse privado de cada indivíduo possa ser uma sentinela sobre os direitos públicos. Estas invenções de prudência não podem ser um requisito menor na distribuição dos poderes supremos do Estado." ("O Federalista" 51)
    Contra o despotismo popular Esta preocupação de Madison é ainda maior quando o poder reside no povo, porque, num governo popular, é natural que o poder se concentre na esfera legislativa. Neste caso, Madison insiste na divisão do lesgislativo, o que conduzirá à criação de duas Câmaras - o Senado e a Câmara dos Representantes, no caso americano, um pouco à semelhança da Câmara dos Lordes e dos Comuns, no caso inglês, embora, no caso americano, ambas sejam eleitas:
    "Mas não é possível dar a cada departamento um igual poder de autodefesa. Em governos republicanos a autoridade legislativa predomina necessariamente. O remédio para este inconveniente é dividir a legislatura em diferentes ramos; e torná-los, por diferentes modos de eleição e diferentes princípios de acção, tão pouco conectados entre si quanto a natureza das suas funções comuns e a sua dependência comum na sociedade possa admitir. " ("O Federalista" 51)
    Em suma, podemos dizer que James Madison procurava manter a tradição inglesa de um governo limitado nas novas condições da chamada soberania popular. Rousseau, por seu turno, imaginava que, sendo o povo soberano, o governo dele emanado devia ser absoluto.
    É isto que fica patente na seguinte passagem, verdadeiro exemplo de delírio despótico em nome dos iguais: "Agora, como o soberano é formado integralmente pelos indivíduos que o compõem, ele não tem nem poderá ter qualquer interesse contrário ao deles; deste modo, o soberano não tem necessidade de dar garantias aos súbditos, porque é impossível para um corpo desejar magoar todos os seus membros e, como veremos, não pode magoar qualquer membro particular. O soberano, pelo mero facto de o ser, é sempre tudo o que deve ser" ("O Contrato Social", Livro I, cap. 7).



    Director do Institutos de Estudos Políticos da Universidade Católica, presidente da Churchill Society de Portugal

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