Eu estava à beira de uma estrada, desses postos de gasolina que parecem existir fora do tempo — nem cidade, nem viagem, só espera. Um Bobs, café ralo, comida triste, barulho de caminhão passando como se fosse o próprio relógio do mundo. Eu ali, sentado, esperando o tempo passar, como quem espera um ônibus que não sabe se chega ou se já passou.
Ela estava em São Paulo. Sempre São Paulo.
Pensando em lutos.
O WhatsApp, esse balcão moderno onde a gente
encosta o cotovelo pra conversar sobre tudo e nada, vibrava no bolso como quem
pede licença para falar de coisa séria.
“Lembra do amigo que te falei…?”
Lembrava. Sempre lembramos. A memória tem esse vício de aparecer antes do
ponto final. O pai com Parkinson, o avanço, a espera que já é uma forma de
despedida. Morreu de madrugada. As mortes gostam desse horário discreto, quando
o mundo está dormindo e não pode protestar.
Ela escreveu que é estranho. E é. Estranho como
até quando a gente espera — e às vezes até torce, com culpa e misericórdia
misturadas — a morte nunca vem do jeito certo. Nunca chega com manual de
instruções. Nunca respeita o preparo emocional que a gente finge ter.
Respondi pouco. “É horroroso sempre.”
Porque certas frases precisam ser curtas para não mentirem.
Ela disse que achava que nunca tinha sentido
um luto de verdade. Levou isso pra terapia, como quem leva uma roupa antiga
para ver se ainda serve. A morte da avó, outras perdas. O psicólogo disse que
havia coisas mais importantes pra resolver primeiro. Engraçado isso: até o luto
às vezes entra numa fila.
Ela admirava a mãe. Lidou bem com os lutos,
disse. Entendeu os fluxos naturais. A vida indo, a vida ficando. Mas não lidou
bem com o divórcio. Porque separação é uma morte que continua respirando.
Enquanto isso, eu estava ali, preso — como
sempre — a passados imemoriais e futuros hipotéticos. Essa mania feia de não
morar no agora. Disse a ela que meu filho — Joca — tinha me ensinado uma coisa
rara: ficar no presente. Não como filosofia barata, mas como prática de
sobrevivência. Funciona. Dá uma sensação boa. Quase um alívio.
Olhei em volta. Posto de gasolina. Rodovia.
Pessoas que não me conheciam e não sabiam de nada da minha história, o que é
sempre reconfortante. A vida, pensei, às vezes é uma crônica. Não um romance —
longo demais — nem um poema — curto demais. Uma crônica: banal, atravessada por
silêncio, vento e uma conversa que vem de longe.
Contei a ela onde eu estava. Disse que
conversava com ela enquanto esperava o tempo passar. Pedi, em tom de
brincadeira séria, que ela adicionasse as notícias do dia. As notícias do vento
em São Paulo. Talvez o barulho dos prédios, talvez a pressa das pessoas, talvez
algum sinal de que a cidade continua mesmo quando alguém morre.
Ficamos assim. Dois amigos separados pela
distância, unidos por uma tela e por esse assunto que nunca se esgota: a perda,
o tempo, o agora que insiste em existir apesar de tudo.
O
caminhão passou. O café esfriou. O luto continuou do lado de lá.
E, por alguns minutos, eu estive exatamente onde estava.
O que, convenhamos, já é muita coisa.

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